terça-feira, 10 de junho de 2008

Integração às avessas no Haiti

Por Raquel Moysés – jornalista

Toda vez que Didier Dominique se levantava para falar, durante a quarta edição das Jornadas Bolivarianas, do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC), quem acompanhava os debates desde o primeiro dia aguardava uma observação polêmica. Homem que sacode consciências com sua voz tonitruante, esse arquiteto, professor da Universidad Nacional de Haiti, resolveu, como os manifestantes de Córdoba, há 90 anos, “chamar todas as coisas pelo nome que têm”. Porque, como os estudantes argentinos que se bateram pela reforma universitária em 1918, Didier clama por um tempo em que a terra americana conte “uma vergonha a menos e uma liberdade a mais”. Militante da organização Batay Ouvriye (Batalha Operária), ele luta para que venha o tempo da liberdade também para seu povo, hoje aprisionado pela maioria dos próprios governos-“irmãos” latino-americanos, a mando do império estadunidense.

Didier lembrou, durante as Jornadas de abril, sobre o tema “Nações e Nacionalismos na América Latina”, que o Haiti é hoje exemplo de integração latino-americana às avessas. Uma integração destinada a oprimir e martirizar o povo haitiano. Por isso é que ele levanta a voz, feito trovão, quando denuncia, imitando, com as mãos, o formato de duas vírgulas das reticências, quando pronuncia a palavra “progressistas”: O Haiti é hoje um país ocupado. Agora, neste instante, estão em meu país as forças armadas latino-americanas de governos “progressistas” sob o mandado dos Estados Unidos.

Os países da América Latina – com exceção da Venezuela e de Cuba – desde 2004 comandam a intervenção em seu país, sob as ordens das classes dominantes e de governos - como o do Brasil - que dissimulam a invasão dizendo que estão ali exercitando “práticas de ajuda humanitária”. Didier lembra que os haitianos sempre amaram o Brasil, principalmente seu futebol, seus jogadores, e viveu um drama quando viram que também eram brasileiras as tropas que invadiram o Haiti.

E são soldados dessa “Força de Paz” - chamados de "los cascos azules de la Minustah" - Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti - que também promovem terror entre a população, a pretexto de combate aos violentos, matando e ferindo gente em zonas empobrecidas como Cite Soleil, grande favela da capital Porto Príncipe. E depois, são os haitianos os acusados de serem “uma ameaça para a paz e a segurança internacional na região", como o fez o Conselho de Segurança das Nações Unidas, na Resolução 1743, pela qual foi prorrogado o mandato da Minustah.

Nacionalismo e dominação

“Cuidado”, adverte Didier, “porque o nacionalismo também é responsável pelo panorama atual de dominação política, econômica e militar, que provoca migrações e separação de etnias.” E é em nome de “nacionalismos” que tropas formadas por brasileiros, uruguaios, argentinos,etc, provocam terror em bairros populares, metralhando e matando, denuncia o professor. “Tem toque de guerra, cobre-fogo, todo dia no Haiti...É essa a outra face da integração da Alba?” – pergunta Didier, referindo-se à Alternativa Bolivariana de Integração da América Latina e do Caribe.

E não é por casualidade que o Haiti é ocupado desde que Colombo entrou nas terras de Abya Yala, “sem visto de entrada”. Didier lembra que toda a zona denominada “Caribe” leva este nome por causa de uma etnia assim chamada. E as águas eram a unidade desses “povos do mar”, que antes de Bolívar buscavam a unidade caribenha nas suas batalhas de resistência aos espanhóis.

Didier lembra que o Haiti, síntese de muitas partes da África, é o símbolo de uma escravidão tremenda. Muito sangue do seu povo foi derramado, ao longo da história, na luta pela liberdade. “Pátria ou morte” já era o lema dos escravos. No Haiti, a luta pela libertação foi sempre tão significativa que q lá se abrigaram várias revoluções latino-americanas. “Saíam de nosso país com barcos, armas e até com nossos homens”, comenta o professor. Mas a revolução exemplar que o povo conduziu, ao longo de sua história, na luta pela libertação, deixou a sociedade haitiana vulnerável e o país destroçado completamente, com cidades queimadas, pontes destruídas, agricultura devastada.

Hoje, como lembra Didier, no Haiti não há indústria nacional, mas há uma migração enorme do campo para as cidades e uma vasta imigração, principalmente para a República Dominicana e os Estados Unidos. A estratégia do império estadunidense e seus aliados é de explorar o povo haitiano como mão-de-obra, a mais “barata” do continente e uma das mais exploradas do planeta, recebendo em média apenas U$1,70 ao dia. Hoje há trabalhadores, denuncia Didier, que ao meio dia nem conseguem comer, e tomam cachaça para suportar a continuidade da jornada de humilhações.

Zonas francas de escravidão

Agora, a prioridade do mercado para o Haiti é transformar o país em zonas francas. Este projeto visa tornar o país uma plataforma para a confecção e exportação de bens de consumo, principalmente têxteis, estabelecendo um regime de nova escravidão. Nessa estratégia de ocupação econômica, as multinacionais constroem suas fábricas e atuam livremente, totalmente isentas de impostos. O acordo que permitiu o estabelecimento dessas zonas de franca escravidão no Haiti foi assinado em 2002, pelo então presidente Jean-Bertrand Aristide.

Ex-padre católico ligado à teologia da libertação, Aristide foi presidente do Haiti em três períodos: em 1991, de 1994 a 1996, e ainda de 2001 a 2004. Os que o apóiam o consideram o primeiro líder democraticamente eleito do Haiti", um "amigo dos pobres". Os críticos o acusam de ditador corrupto. Por duas vezes se tornou impopular a ponto de ser derrubado do governo: em 1991, através de um golpe; em 2004, por força de uma rebelião popular. Desde sua segunda deposição, refugiou-se na África do Sul.

Didier comenta que Aristide foi mais uma das tantas desilusões que sofreu o povo haitiano. Lembra que depois de ter sido deposto pela primeira vez, exilou-se nos Estados Unidos. “Saiu do país Aristide e voltou ‘Harrystide’, um neoliberal”. Didier conta que foi ‘Harrystide’ quem assinou, com Bill Clinton, o tratado das zonas francas, e que o presidente estadunidense foi ao Haiti, como um clandestino, lançar a pedra fundamental da construção dessas zonas de exploração máxima do povo haitiano.

E como não há instância internacional que julgue as multinacionais que atuam nas zonas francas, esses espaços passam a atuar como uma "terra sem lei”, onde é aviltante o desfrute do ser humano. Por causa da miséria generalizada, o trabalhador busca emprego nas zonas francas, pois fora delas a situação é ainda pior. Enquanto isso, denuncia Didier, a classe dominante haitiana vende a mão-de-obra superexplorada como uma "vantagem comparativa" do país.

Por isso é que diversas vezes, durante as Jornadas Bolivarianas, Didier discutiu criticamente o conceito de nacionalismo. “Existe um ‘nacionalismo’ haitiano totalmente ligado ao imperialismo econômico. O nacionalismo burguês existe, e é muito forte”. Para Didier, o Mercosul é uma dessas zonas de ‘nacionalismo’ a serviço da exploração, e há que se ficar atentos à Alba, para que ela não repita aquilo que quer combater. “Quase toda a Alba não invadiu o Haiti?”- pergunta, provocador.

“A integração feita com um governo corrupto, no que pode dar?” - indaga Didie, lembrando que nada do que a Venezuela destina ao Haiti, através de acordos de integração com o governo - chega efetivamente ao povo. Por isso, adverte, há que se precisar o que é nacionalismo, ou nacionalismos, não entrando acriticamente no campo de um internacionalismo imaginário. O militante- professor, nesse sentido, não tem dúvida: “o nacionalismo deve ser um terreno de disputa e de luta”.